terça-feira, 24 de abril de 2007

Continuação

NOTÌCiA preliminar: o meu computador está avariado e há várias letras que nem sempre «entram». Nomeadamente, está a saltar «h» e «a» com alguma frequência (piada para os que conhecem os snobismos ingleses: my computer drops its aitches). Não vou estar sistematicamente a corrigir os erros.

SOBRE A AULA ANTERIOR

Aqueles de vós que lestes (!! - mas é assim mesmo que se deveria escrever se se usasse ainda esse tempo verbal) o texto anterior - uma minoria, provavelmente, ter-vos-eis perguntado (já agora vou continar assim) qual a relação do título com o texto.

A explicação ter-vos-á aparecido na aula: é possível afirmar que apenas o mundo fenoménico (o mundo cognitivo, compreendido, sentido) é real, de forma que tudo o resto é inexistente. A esta posição costuma chamar-se solipcismo, quer dizer: o pensador está sozinho no mundo e imagina que o que ele, pensador, pensa, existe mesmo.

Costua-se associar Berkeley a esta posição, embora seja falsa: Berkeley dizia que o mundo real existia, mas que «ser é ser percepcvionado», quer dizer, que uma coisa só existe na medida em que algum conhecedor a percepciona.

Tenho de confessar não saber quase nada da teoria de Berkeley, mas penso que o artigfício da teoria era a de que as coisas efectivamente existiam porque Deus as percebia; o ponto importante dele, que não nos vai interessar, pelo menos agora, muito, é o de que ele afirmava que a matéria não existe, mas apenas o espírito. Se compreendo Berkeley bem, isto significa que as coisas só existem na medida em que são representadas.

Tentando cativar-vos um pouco mais para estas matérias abstrusas, dir-vos-ei que a ideia não só faz sentido como, sobretudo, tem actualmente uma representação bastante importante na Psicologia. Se lerem os meus textos científicos, verão que eu próprio defendo uma posição que, embora diferente, tem pontosde contacto com esta.

A razão por que falo de Berkeley é a sua importância na transição para David Hume, de que falaremos mais tarde. O que interessa em Hume, neste momento, é dizer que ele levou a ideia de que é o conecimento que temos das coisas que é importante. Hume dizia que muito mais importante do que conhecer a matéria, é saber como se conhece. Isto é, parece-me, evidente: independentemente das posições que enfatizam o conhecimento do mundo «real» (Física, por exemplo) é essencial saber como é que se conhece. Hume foi autor de uma série de teorias sobre a associação (que vêm de antes, incluindo do próprio Berkeley e mesmo muito mais de trás - Aristóteles, pelo menos) que seria a principal forma de conhecimento.

Numa das turmas (salvo erro a primeira), ouve uma discussão interessante sobre o papel da metáfora no conhecimento: associamos (ou acomodamos) uma coisa nova a uma coisa que já conhecemos.

O exemplo historicamente mais importante de Hume é o da causalidade. Diz ele que a Filosofia pensa na causalidade como centrada nas propriedades dos antecedentes e consequentes (da aula: o exemplo da núvem que faz chover), mas que a causalidade não está nas coisas mas na mente: como a causalidade se baseia na verificação de que a um antecedente se segue regularmente um consequnte, a nossa mente associa as duas noções através da causalidade.

A isto respondeu Kant que não podia ser assim: para que haja noção de antes e depois, o próprio tempo tem de ser dado a priori (isto é, tem de ser uma propriedade inata da mente): de outro modo como poderíamos saber o que acontece antes e depois. O espaço, também para Kant, era a priori: se todas as sensações têm lugar na nossa mente, como é que através da experiência podemos concluir que elas ocorrem fora de nós?

Há mais elementos na teoria de Kant que vos convido a ler nos manuais de Psicologia que já indiquei - e para os realmente corajosos, na própria Crítica da Razão Pura, mas o livro é longo e difícil. Mas o que nos vai interessar aqui é a ideia de que tem de haver estruturas de organização da experiência que sejam prévias a essa experiência para que possa haver conhecimento.

No fundo isto não é nada diferente de dizer que para que o conhecimento seja possível é necessário que haja um conhecedor. Uma metáfora grosseira pode ser adequada: como é que se pode deitar água num copo se um copo não tiver nenhuma estrutura?

Kant defendia então que a Filosofia (o estudo dos fenóemnos da mente - para Kant a Psicologia era um estudo introispectivo, impossível porque os conteúdos da mente não são os seus processos o que é, parece-me, verdade) deveria estudar os processos a priori de dar significado ao mundo em si.

O mundo em si - coisa em si - é o númeno (ou noumeno; mas pronuncia-se númeno); a sua existência não é posta em causa, mas ele é, por definição, impossível de conhecer, porque o conecimento resulta da tradução dessa coisa em si pelos filtros do entendimento. O conecimento - o fenómeno, quer dizewr, aquilo que é conhecido - é, portanto, sempre uma interpretação.

Uma interpretação depende de um código. É isso, pois, que +é necessário saber fazer: esclarecer qual o código.

Veremos na próxima aula a extrema importância desta ideia.

E pronto. Espero que vão participando mais. Bom feriado.

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RdeSá

sexta-feira, 20 de abril de 2007

TEXTO NÃO REVISTO

Da racionalismo ao solipcismo

Falei-vos «abundantemente» de Descartes antes das férias. Podem ter estranhado eu não ter começado a falar quer do Fechner (um ponto de partida habitual) quer do Wundt quer, conversamente, do Aristóteles.


A importância da consciência – A razão por que não o fiz é bastante simples. O que eu quis deixar mais claro foi a ideia – que não é propriamente original de Descartes – quer os filósofos árabes quer Santo Agostinho quer ainda Pedro Hispano – já a tinham intuído mais ou menos explicitamente – a ideia, dizia, de que só podemos ter a certeza de nós próprios.

Repetindo algum tanto o que disse durante as aulas, a questão importante é esta. Do mundo temos apenas as representações que fazemos dele; essas representações são feitas pelo nosso corpo, mas só as conhecemos na nossa mente. Como podemos duvidar da existência do mundo real –eu posso estar a sonhar que estou a escrever neste computador e toda a minha vida pode ser um sonho– e mesmo do nosso corpo –afinal eu sinto um corpo, mas nada me garante que essa sensação não seja uma imaginação da minha mente– posso então concluir que a única certeza que tenho é da minha própria existência psicológica.

Este ponto é, parece-me, importante porque, na tradição científica e objectiva que o pensamento europeu tomou a partir de Galileu – o fundador da física moderna, como sabem – começou-se a duvidar sempre da validade da nossa própria experiência.

Como, pelo que pude perceber das aulas, a ideia de que a mente é uma certeza mas o corpo e a realidade exteriores não o é, gostaria de desenvolver aqui um pouco a questão.

Tomemos a seguinte afirmação (que corresponde ao que Descartes realmente escreveu): Posso imaginar a minha mente a existir sem um corpo, mas não posso imaginar o meu corpo a ser eu sem mente. Alguns dos meus alunos dir-me-ão que não, que podem perfeitamente imaginar o seu corpo sem mente. É verdade que sim – posso imaginar o meu corpo morto – mas o que não posso é imaginar-me a mim sem mente: posso imaginar o meu corpo, não me posso imaginar a mim. Aqui várias correntes das ciências sociais poderiam dizer-me que o corpo é o repositório do eu e que o eu é principalmente social, sendo a sua referência social precisamente o corpo.

Gostaria de mostrar que isto pode ser verdade mas que não tem nada que ver com a certeza do que Descartes disse.

O que Descartes disse é que o conhecimento, a consciência, implica um conhecedor; esse conhecedor somos «nós», quer dizer, o Eu. Esse eu pode conhecer quer a realidade exterior quer os pensamentos e ideias que se encontram no seu campo de consciência, mas o que e importante é que eu posso acreditar que esses conteúdos da consciência não vêm do exterior mas são apenas fabricações da minha mente; enquanto que não posso imaginar-me a mim – quer dizer, não posso ter a experiência fenomenológica do Eu – sem mente. Na medida em que eu sei, que eu faço, que eu ajo, há a consciência do Eu; os conteúdos dessa consciência podem não corresponder a nada «lá fora», mas, visto que Eu penso, não posso pôr em dúvida nem esse Eu nem a sua consciência. É por isso que podemos imaginar-nos a existir (quer dizer: a sentir e a pensar) sem corpo mas não podemos imaginar seja o que for sem mente.

Esta é a principal questão que quero salientar em Descartes.


Descartes e o empirismo – Significa isto que Descartes achava que vivia num mundo de imaginação, como uma mente alucinando experiências não existentes? De maneira nenhuma. Descartes era um racionalista no sentido de que precisava de ter certezas racionais. Mas era um empirista porque achava que Deus não era perverso e que não lhe tinha dado uma razão que o enganava e sentidos que lhe faziam ver o que não existia. Por isso, acreditava na importância de estudar aquilo que os sentidos viam.

Mais, Descartes era um racionalista extremamente «materialista»: ele acreditava que as nossas «paixões», quer dizer, as nossas emoções e motivações, eram consequência de processos corporais. Por exemplo, um animal põe uma pata no fogo e retira-a imediatamente Como pode fazer isto? A teoria de Descartes tem que ver com uma espécie de sistema nervoso que funcionava com base em fluidos que circulavam no organismo, mas o que ele dizia é que os movimentos do corpo eram todos movimentos mecânicos, como os de autómatos (que ele viu nos jardins de Saint Germain: figuras que faziam movimentos e, salvo erro, sons quando movidas por pressão de água). Esta teoria, que explica – desde que se lhe dê uma roupagem moderna em termos do funcionamento da matéria – efectivamente o comportamento dos animais e de plantas. Por exemplo, há uma planta que vive no deserto e que, quando chove, projecta as sementes para longe de si. Como é que a planta «sabe» quando deve projectar as sementes? Não sabe: o que acontece que é quando chove as paredes do fruto incham com a humidade; em consequência, rompe-se uma membrana, o que acontece com violência; as sementes são, por causa da acção da abertura súbita do fruto, projectadas para longe. Era este o tipo de mecanismo que Descartes imaginava estar na origem do comportamento humano e animal; a ciência contemporânea tem usado precisamente o mesmo tipo de pressuposto.

Por isso, Descartes fez trabalhos (fisiologia) para tentar compreender funcionamento do corpo humano. Por exemplo, estudou como se formava a imagem na retina, raspando a parte posterior de um olho de boi.

Repito que tudo isto era justificado pelo pressuposto de que Deus não nos enganava e de que podemos confiar nos nossos sentidos se judiciosamente interpretados.

Aquilo que para Descartes não podia ser explicado desta maneira era o facto de haver livre arbítrio.

O livre arbítrio seria, segundo Descartes, o resultado do uso puro da razão; a razão consiste em perspectivar um problema em termos claros e no plano mental. É esta capacidade de perspectivar um problema no plano mental a que se chama pensamento. Ora vimos que o pensamento era considerado como não material, como existindo no plano estrito da mente. Logo, os animais não tinham mente (=alma) mas nós tínhamos conflito entre a mente e as paixões do corpo.

Racionalismo – Há uma outra questão importante. A saber, a nossa mente pode-nos enganar, mas há verdades que, na própria mente, são auto-evidentes. Dei-vos o exemplo do triângulo equilátero perfeito e de algumas evidências lógicas (o todo é maior do que a parte, a propriedade transitiva, etc.).

O que há a tirar disto é que há coisas que são logicamente necessárias independentemente da experiência. Uma delas era, precisamente, Deus – a ideia de perfeição e os exemplos da lógica têm de ter uma qualquer origem e Descartes atribuiu-a a Deus, o que é perfeitamente lógico; actualmente falamos na selecção natural mais ou menos com o mesmo estatuto. Independentemente de se acreditar em Deus ou não, a verdade é que parece, realmente, haver uma origem qualquer para as regras da nossa mente que não são provenientes da experiência.

Este segundo aspecto foi muito debatido e, de resto, ainda o é. Os grandes debates do inatismo e do empirismo – qual a importância relativa das instruções inatas e das aprendizagens – está longe de estar concluído (para os interessados nesta questão, Steven Pinker, The Blank Slate) e tem até conotações ideológicas.


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Legado – Descartes abre várias pistas para quase todos os campos da Psicologia. Por um lado, a importância da mente. Descartes não se contentou em dizer que a mente era importante: tentou realmente estudá-la. Fê-lo de duas maneiras: estudando o corpo (a fisiologia) e as suas paixões (as emoções) e, ao mesmo tempo, tentando elucidar as regras de funcionamento da razão.

É bem sabido que Descartes pensava que o mundo tinha uma expressão matemática. O que não é, talvez, suficientemente enfatizado é que Descartes queria, principalmente, saber quais as regras da razão. Trata-se, portanto, de esclarecer as regras da mente. Num curso de Psicologia, esta afirmação parece remeter para a psicologia cognitiva. Contudo, é mais na direcção da epistemologia que Descartes se orienta: quais as regras que permitem conhecer, de forma segura, o que é verdade e o que não é. O representante talvez mais característico desta posição na psicologia é Piaget, de que penso que não teremos tempo de tratar este semestre.

Outro legado importante de Descartes é a fisiologia: quer as paixões da alma quer o conhecimento têm de chegar à mente e é necessário saber como esse percurso se faz. A psicofisiologia tenta, actualmente, responder a essa questão.


Por hoje, são estas as ideias com que vos queria deixar. Pode ser que ainda modifique esta entrada; para já fica assim.


BVF (boa volta à faculdade; ou: boa volta de férias.