sexta-feira, 20 de abril de 2007

TEXTO NÃO REVISTO

Da racionalismo ao solipcismo

Falei-vos «abundantemente» de Descartes antes das férias. Podem ter estranhado eu não ter começado a falar quer do Fechner (um ponto de partida habitual) quer do Wundt quer, conversamente, do Aristóteles.


A importância da consciência – A razão por que não o fiz é bastante simples. O que eu quis deixar mais claro foi a ideia – que não é propriamente original de Descartes – quer os filósofos árabes quer Santo Agostinho quer ainda Pedro Hispano – já a tinham intuído mais ou menos explicitamente – a ideia, dizia, de que só podemos ter a certeza de nós próprios.

Repetindo algum tanto o que disse durante as aulas, a questão importante é esta. Do mundo temos apenas as representações que fazemos dele; essas representações são feitas pelo nosso corpo, mas só as conhecemos na nossa mente. Como podemos duvidar da existência do mundo real –eu posso estar a sonhar que estou a escrever neste computador e toda a minha vida pode ser um sonho– e mesmo do nosso corpo –afinal eu sinto um corpo, mas nada me garante que essa sensação não seja uma imaginação da minha mente– posso então concluir que a única certeza que tenho é da minha própria existência psicológica.

Este ponto é, parece-me, importante porque, na tradição científica e objectiva que o pensamento europeu tomou a partir de Galileu – o fundador da física moderna, como sabem – começou-se a duvidar sempre da validade da nossa própria experiência.

Como, pelo que pude perceber das aulas, a ideia de que a mente é uma certeza mas o corpo e a realidade exteriores não o é, gostaria de desenvolver aqui um pouco a questão.

Tomemos a seguinte afirmação (que corresponde ao que Descartes realmente escreveu): Posso imaginar a minha mente a existir sem um corpo, mas não posso imaginar o meu corpo a ser eu sem mente. Alguns dos meus alunos dir-me-ão que não, que podem perfeitamente imaginar o seu corpo sem mente. É verdade que sim – posso imaginar o meu corpo morto – mas o que não posso é imaginar-me a mim sem mente: posso imaginar o meu corpo, não me posso imaginar a mim. Aqui várias correntes das ciências sociais poderiam dizer-me que o corpo é o repositório do eu e que o eu é principalmente social, sendo a sua referência social precisamente o corpo.

Gostaria de mostrar que isto pode ser verdade mas que não tem nada que ver com a certeza do que Descartes disse.

O que Descartes disse é que o conhecimento, a consciência, implica um conhecedor; esse conhecedor somos «nós», quer dizer, o Eu. Esse eu pode conhecer quer a realidade exterior quer os pensamentos e ideias que se encontram no seu campo de consciência, mas o que e importante é que eu posso acreditar que esses conteúdos da consciência não vêm do exterior mas são apenas fabricações da minha mente; enquanto que não posso imaginar-me a mim – quer dizer, não posso ter a experiência fenomenológica do Eu – sem mente. Na medida em que eu sei, que eu faço, que eu ajo, há a consciência do Eu; os conteúdos dessa consciência podem não corresponder a nada «lá fora», mas, visto que Eu penso, não posso pôr em dúvida nem esse Eu nem a sua consciência. É por isso que podemos imaginar-nos a existir (quer dizer: a sentir e a pensar) sem corpo mas não podemos imaginar seja o que for sem mente.

Esta é a principal questão que quero salientar em Descartes.


Descartes e o empirismo – Significa isto que Descartes achava que vivia num mundo de imaginação, como uma mente alucinando experiências não existentes? De maneira nenhuma. Descartes era um racionalista no sentido de que precisava de ter certezas racionais. Mas era um empirista porque achava que Deus não era perverso e que não lhe tinha dado uma razão que o enganava e sentidos que lhe faziam ver o que não existia. Por isso, acreditava na importância de estudar aquilo que os sentidos viam.

Mais, Descartes era um racionalista extremamente «materialista»: ele acreditava que as nossas «paixões», quer dizer, as nossas emoções e motivações, eram consequência de processos corporais. Por exemplo, um animal põe uma pata no fogo e retira-a imediatamente Como pode fazer isto? A teoria de Descartes tem que ver com uma espécie de sistema nervoso que funcionava com base em fluidos que circulavam no organismo, mas o que ele dizia é que os movimentos do corpo eram todos movimentos mecânicos, como os de autómatos (que ele viu nos jardins de Saint Germain: figuras que faziam movimentos e, salvo erro, sons quando movidas por pressão de água). Esta teoria, que explica – desde que se lhe dê uma roupagem moderna em termos do funcionamento da matéria – efectivamente o comportamento dos animais e de plantas. Por exemplo, há uma planta que vive no deserto e que, quando chove, projecta as sementes para longe de si. Como é que a planta «sabe» quando deve projectar as sementes? Não sabe: o que acontece que é quando chove as paredes do fruto incham com a humidade; em consequência, rompe-se uma membrana, o que acontece com violência; as sementes são, por causa da acção da abertura súbita do fruto, projectadas para longe. Era este o tipo de mecanismo que Descartes imaginava estar na origem do comportamento humano e animal; a ciência contemporânea tem usado precisamente o mesmo tipo de pressuposto.

Por isso, Descartes fez trabalhos (fisiologia) para tentar compreender funcionamento do corpo humano. Por exemplo, estudou como se formava a imagem na retina, raspando a parte posterior de um olho de boi.

Repito que tudo isto era justificado pelo pressuposto de que Deus não nos enganava e de que podemos confiar nos nossos sentidos se judiciosamente interpretados.

Aquilo que para Descartes não podia ser explicado desta maneira era o facto de haver livre arbítrio.

O livre arbítrio seria, segundo Descartes, o resultado do uso puro da razão; a razão consiste em perspectivar um problema em termos claros e no plano mental. É esta capacidade de perspectivar um problema no plano mental a que se chama pensamento. Ora vimos que o pensamento era considerado como não material, como existindo no plano estrito da mente. Logo, os animais não tinham mente (=alma) mas nós tínhamos conflito entre a mente e as paixões do corpo.

Racionalismo – Há uma outra questão importante. A saber, a nossa mente pode-nos enganar, mas há verdades que, na própria mente, são auto-evidentes. Dei-vos o exemplo do triângulo equilátero perfeito e de algumas evidências lógicas (o todo é maior do que a parte, a propriedade transitiva, etc.).

O que há a tirar disto é que há coisas que são logicamente necessárias independentemente da experiência. Uma delas era, precisamente, Deus – a ideia de perfeição e os exemplos da lógica têm de ter uma qualquer origem e Descartes atribuiu-a a Deus, o que é perfeitamente lógico; actualmente falamos na selecção natural mais ou menos com o mesmo estatuto. Independentemente de se acreditar em Deus ou não, a verdade é que parece, realmente, haver uma origem qualquer para as regras da nossa mente que não são provenientes da experiência.

Este segundo aspecto foi muito debatido e, de resto, ainda o é. Os grandes debates do inatismo e do empirismo – qual a importância relativa das instruções inatas e das aprendizagens – está longe de estar concluído (para os interessados nesta questão, Steven Pinker, The Blank Slate) e tem até conotações ideológicas.


**


Legado – Descartes abre várias pistas para quase todos os campos da Psicologia. Por um lado, a importância da mente. Descartes não se contentou em dizer que a mente era importante: tentou realmente estudá-la. Fê-lo de duas maneiras: estudando o corpo (a fisiologia) e as suas paixões (as emoções) e, ao mesmo tempo, tentando elucidar as regras de funcionamento da razão.

É bem sabido que Descartes pensava que o mundo tinha uma expressão matemática. O que não é, talvez, suficientemente enfatizado é que Descartes queria, principalmente, saber quais as regras da razão. Trata-se, portanto, de esclarecer as regras da mente. Num curso de Psicologia, esta afirmação parece remeter para a psicologia cognitiva. Contudo, é mais na direcção da epistemologia que Descartes se orienta: quais as regras que permitem conhecer, de forma segura, o que é verdade e o que não é. O representante talvez mais característico desta posição na psicologia é Piaget, de que penso que não teremos tempo de tratar este semestre.

Outro legado importante de Descartes é a fisiologia: quer as paixões da alma quer o conhecimento têm de chegar à mente e é necessário saber como esse percurso se faz. A psicofisiologia tenta, actualmente, responder a essa questão.


Por hoje, são estas as ideias com que vos queria deixar. Pode ser que ainda modifique esta entrada; para já fica assim.


BVF (boa volta à faculdade; ou: boa volta de férias.

6 comentários:

Diana disse...

Boa noite! meu nome: Diana Orghain..Tive, pelos visto , o comum problema da foto, mas tentarei mais tarde coloca-la.Queria deixar aqui a minha opiniao em relação à cadeira,e é a unica que nos poe a pensar e nao apenas a recitar e redizes. queria tambem aproveitar este espaço para por uma duvida que tive durante as ferias e que ainda neo tive opotrunidade de a esclarecer na aula: pelo que Descartes diz,o nosso mundo é imperfeito, nós somos imperfeitos, o cogito é imperfeito, e nada do que "conhecemos" pode ser causa de si mesmo pela mesma razao, inclusive o cogito, o "eu", portanto deus conserva, mantem a minha existencia, é a causa da minha existencia, entao como poderei eu e mundo que conheço sermos efeitos de deus? como pode um ser perfeito causar, produzir algo imperfeito? acho que o argumento de Descartes é qualquer coisa como, nao se pode acusar deus de nos ter criado imperfeitos, porque isso é proprio das criaturas finitas e criadas, mas eu nao fico muito mais esclarecida porque parece-me que vai contra a noçao de perfeiçao que atribuimos a deus.tenho ainda outra duvida mas fica para outra acasiao, para o meu comentario nao se tornar demasiado "seca"....
obrigada pela atençao
CMC
BOA NOITE

Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva disse...

Não é nada seca: é para isso que este blog serve. Mas, por um lado, o homem tem de ser imperfeito para poder ter livre-arbítrio e poder escolher o bem... Enfim, é essa a justificação religiosa.

Mas parece-me que a resposta real é outra. Disse numa das aulas de 6ª feira que há quem diga que Descartes no fundo era ateu e que foi apenas por medo da censura que não o declarou. Penso que isso é errado, pelas razões seguyintes.

1. Descartes partiu do conhecimento que ele, como homem, podia ter. Isto é importante, porque não partiu da ideia de Deus, como na Idade Média: partiu da ideia do conhecimento possível.

2. Partindo do conhecimento possível, notou as nossas imperfeições - as dificuldades em conhecer. É esse o ponto de partida de Descartes: não um Deus perfeito, mas um homem imperfeito.

3. Esse homem imperfeito consegue imginar a perfeição. Ora essa perfeição não é um dado empírico, não vem dos sentidos, tem de estar presente a priori (veremos que este argumento aparece depos na Psicologia Gestalt).

4. Essa noção de perfeição teria de vir de algum lado. A origem dessa capacidade de imaginar a perfeição seria então uma força geradora - uma origem - capaz de nos fazer capazes de conceber a ideia de perfeição mesmo quando essa perfeição não vem dos sentidos.

5. Essa força geradora é o Deus de Descartes. É apenas uma origem, uma tentativa de explicar o paradoxo de nós sermos imperfeitos em termos cognitivos mas conseguirmos imaginar per4feição.

6. A perfeição apenas se vê na mente que é apenas espiritual e não material. É, pois, o espaço de Deus, o espaço onde os humanos podem relacionar-se com o divino (divino aqui significa matemática).

COnclusão. Penso que Deus, para Descartes, era apenas a origem da lógica e da inteligência racionais. Talvez Deus, para Descartes, fosse uma espécie de origem da matemática.

cLARO Que isso não tem nada que ver com o Deus cristão habitual e é por isso que o Descartes foi suspeito à igreja.

Finalmente. O argumento que eu conheço por parte da Igreja para justificar que Deus nos fez imperfeitos é para nos dar escolha, para que sejamos bons em consciência e não por sermos feitos bons.

Quer isto dizer que a nossa vida é feita para que possamos escolher entre o bem e o mal. Isto entra em contradição com a doutrina da predestinação, mas não é altura de falarmos sobre isso. O que é importante é que se trata de uma visão muito diferente da vida da que temos hoje.

Actualmente, a vida é uma coisa de que se goza; segundo as doutrinas éticas, a vida serve para decidir entre os justos e os injustos, entre os bons e os maus. Ou seja, a vida é uma espécie de maneira de nos pôr à prova em termos éticos.

Claro que pode dizer que um Deus realmente bom não teria feito isso e não nos teria criado imperfeitos. Sim, mas se fosse assim, Deus não nos teria criado ponto parágrafo: não sofreríamos nem teríamos a necessidade do prazer que vem do facto de viver.

Se me pergunta aquilo em que EU acredito a coisa é diferente.

A metéria teve a infeliz acaso de se agrupar em ácidos que se reproduzem. Os que se reproduzem melhor sobrevivem. Os outros ficam. Na nossa espécie, o sucesso reproddutivo passa pela capacidade de cooperação. A cooperação só se consegue sendo «bom» em termos sociais - daí a origem funcional da ética.

Mas eu não acredito em deuses, como acho que sabe. Só acredito em que podemos ter impulsos religiosos, o que é diferente. Mas isto +e outro assunto.

Obrigado pela sua pergunta.

RdS

Garianne disse...

Bom dia. Após alguma reflexão sobre o assunto, surgiu-me uma dúvida. Em que ano Descartes começou a dedicar-se aos problemas da filosofia? Mais precisamente gostaria de saber de quando datam os primeiros indícios de Deus como argumento final(inicial)?

Tiago Almeida disse...

Boa noite.

Concordo com praticamente tudo o que o professor escreveu, e concordo, naturalmente, com Descartes e a sua forma de pensamento inovadora (nos dias de hoje, por exemplo, para mim – que nunca tinha tomado contacto com Descartes, aparte do seu “Discurso do Método”; que, mesmo assim, ainda não li na íntegra) principalmente no que toca à distinção entre alma e corpo. Não sei se “concordo” será a palavra mais correcta, certamente que não; mas usando um adjectivo mais cru, todo o seu trabalho filosófico é, no mínimo, brutal – no sentido positivo da palavra: soberbo, único.
Não tenho muito mais a acrescentar ao que o professor escreveu exceptuando a questão de Deus. Não é a questão central da cadeira nem de Descartes mas é, para mim, daquelas que mais dúvidas me remete – dúvidas acerca de Descartes, para além de mim. Por isso que seja um pouco “off topic” aquilo que tenho para dizer/escrever...

Na obra “Os Princípios da Filosofia”, Descartes trata da questão de Deus (não somente desta mas também desta – trata também, por exemplo, da distinção entre alma e corpo). Aliás, o título do livro é bastante elucidativo.
Dos vários pontos que Descartes enumera seleccionei apenas o 14 e é acerca desse que me vou pronunciar - existem mais mas escolho apenas um para não tornar o comentário demasiado longo. Apresento o título do ponto 14 e depois três excertos que seleccionei, no devido contexto.

"14 - Pode-se demonstrar que há um Deus, apenas porque a necessidade de ser ou de existir está compreendida em a noção que temos dele."

"Quando, posteriormente, passa em revista as diversas ideias ou noções que estão em si, e encontra a noção de um ser omniscente, todo-poderoso e extremamente perfeito, ajuíza facilmente através do que apreende em tal ideia, que Deus, que é esse ser todo perfeito, é ou existe."

"...observa nessa ideia (na ideia de um Deus) não somente uma existência possível, como nas outras, mas uma absolutamente necessária e eterna."

"...a existência necessária e eterna está compreendida na ideia de um ser perfeito, deve concluir que um tal ser é ou existe." - neste último excerto, Descartes apresenta esta conclusão precedida da demonstração do triângulo equilátero.

Neste momento vivo num contexto histórico bastante diferente do de Descartes, daí que possa ter alguns argumentos, liberdade ou o que quer que seja que ele no seu tempo não tinha; talvez não seja inteiramente justo. Mas aparte disso não acredito que seja completamente linear, ou pelo menos tão linear quanto Descartes afirmava, que encontremos em nós uma derradeira noção de um ser todo poderoso; acho que indo ao mais fundo de nós não é obrigatoriamente necessário que tenhamos essa noção, de uma forma perfeitamente ideal, no mínimo. Falando por mim não encontro a noção de um ser que tudo pode, quer e faz como Descartes enuncia, não vislumbro uma entidade extra-homem plena de perfeição. A liberdade da minha alma permite-me isso, não querendo com isto dizer que não procurei nela essa noção, pelo contrário. A confirmação de que esse tal ser é ou existe em mim, disso é que não sei até que ponto o posso dizer com convicção.
A existência absolutamente necessária e eterna, que é o protótipo de qualquer Deus dos nossos dias, pelo menos um dos parâmetros, com isto não concordo convictamente. O facto de não ter em mim, fielmente, a noção da existência desse Deus é o meu primeiro argumento para que tal existência não seja absolutamente necessária e eterna; reservo para a alama de cada um se essa entidade existe, se é necessária - absolutamente - e eterna. Não tenho nenhuma certeza acerca da existência de Deus, pelo menos plena certeza, e não vejo como poderá a sua existência ser ABSOLUTAMENTE necessária e eterna para o ser humano; este, como entidade individual, é que o deve decidir mediante aquilo que encontrar em si, seguindo esta interpretação de Descartes.
Deste modo não concluo que um ser todo perfeito é ou existe, ou que tem casa obrigatória e absoluta dentro de cada uma das nossas almas - alma no contexto de mente.

Isto foi escrito quando havia apenas o comentário da Diana - não enviei porque não tinha internet; mas vendo o que foi escrito depois talvez deva investigar bem quem era ou como era este Deus de Descartes...!

"Que para examinar a verdade é necessário, uma vez na vida, pôr todas as coisas em causa, tanto quanto se puder."

Peço desculpa pelo tamanho disto. Boa noite e viva a liberdade.

Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva disse...

Caro Tiago
Obrigado pelo seu comentário tão extenso, tão informado e tão franco. Como já disse na resposta à Diana, Deus, para Descartes é uma causa única. A questão de Deus em Descartes é complicada e não pretendo saber tudo – nem sequer saber muito – sobre o assunto. O que posso responder é que a ideia de perfeição que se encontra no nosso espírito – a ideia da «boa forma» da psicologia Gestalt – tem de ter uma explicação. O facto de considerarmos as «boas formas» boas, em si, é interessante.
Usando uma metáfora da música porque é que consideramos um acorde consonante «perfeito» enquanto que um que é dissonante é imperfeito? Penso que isto tem que ver com a forma como o nosso espírito está construído. Tenho um texto, que posso postar aqui em comentário, sobre como é que se reage à música: as formas em repouso, ou pelo menos equilibradas, parecem ser intrinsecamente reforçantes.
Descartes diz que esse sentimento do «bom», do «perfeito» foi dado por alguém; se o conseguimos imaginar, quem no-lo deu deve também ser perfeito.
Isto não é nada evidente: é perfeitamente possível afirmar que foi um Deus mau mas omnisciente que nos fez ter a ideia da perfeição e a experiência da imperfeição – cf. Comentário à Diana.
***
Quanto ao que diz de não encontrar argumentos fenomenológicos para acreditar em Deus, a resposta tem de ser um pouco divergente relaticamente a descartes.
Os únicos argumentos possíveis para acreditar em Deus são fenomenológicos – a não ser que necessitemos de uma explicação para a existência do mundo. Mas o «sentimento de Deus» é uma emoção nossa, que podemos encontrar ou não.
Parece-me que, em Deus, as pessoas procuram várias coisas. (A propósito, há um livro maravilhoso sobre esse assunto e está traduzido em Português: O Sagrado, de Rudolph Otto). Por um lado, Deus é uma espécie de «coisa que se imagina mas é impossível» (a explicação, salvo erro, de S.to Anselmo): imagine-se a coisa maior possível e imagine-se que há uma coisa ainda maior: isso é Deus. Quero com isto dizer que temos a capacidade de imaginar um superlativo dos superlativos, um mais do que infinito.
Essa experiência é ilógica, não parece real. Se fizermos a experiência em estado relativamente exaltado, aquilo que acabo de escrever e que parece simplesmente parvo (um mais do que infinito) pode fazer-nos ter arrepios na espinha.
Penso que a noção de Deus – a noção mística de Deus, não a racional – depende precisamente dessa violação do que sabemos ser possível. Se formos racionalistas, achamos que é apenas uma tolice (da mesma forma que um racionalista puro acha os filmes de heróis simplesmente idiotas e que nunca chega a considerar que a pessoa que ama é perfeita). Mas se suspendermos o racionalismo, essa experiência é poderosa: confunde-nos, ultrapassa-nos – «overwhelms us». Essa é, creio, uma das condições para a existência do Deus místico: uma coisa inexplicável, incompreensível, e contudo uma coisa que conseguimos entrever. Algures na Internet (talvez na minha página pessoal) tenho um texto sobre o misticismo, que nunca foi publicado porque o estou a guardar para um livro e em que penso que explico isso mais ou menos de maneira clara.
Uma segunda origem da noção de Deus está na natureza gregária e dependente da nossa espécie. Já não há muitos filmes assim, mas se se lembrar dos filmes do Clint Eastwood (Unforgiven, por exemplo, mas o fenómeno é ainda mais claro nos westerns mais antigos) verificará que há uma personagem que tem emoções mas que é completamente independente, que nunca pede nada a ninguém (o Unforgiven é, de resto, baseado nisso: o mito do pistoleiro, e a transformação de um homem normal nesse mito). Todos os homens e presumo que todas as mulheres gostam desse tipo de ideal: o homem forte que não pede ajuda.
É extraordinariamente difícil, mesmo para homens realmente fortes, conseguirem não pedir ajuda. Todos nós já nos vimos a situação de precisar de um ombro ou de uma mão que nos conforte. Chamo a isso a «necessidade de arrimo», mas os psicólogos americanos deram-lhe outros nomes. Não interessa desde que se compreenda o que quer dizer: quando estamos aflitos, sem saber o que fazer, muitos de nós tendemos a pedir ajuda, nem que seja apenas alguém que nos oiça.
Deus é o ouvinte supremo. Não só nos garante amor incondicional como perdão desde que o amemos. E garante, também, ajuda, que se consegue através da nossa humilhação perante ele (é por isso que se reza de joelhos ou deitado).
Estas, brevemente e sem me reler, são motivações para se acreditar em deus: são, uma delas, cognitiva; a outra funcional e motivacional.
A de Descartes não se enquadra em nenhuma destas: é puramente uma necessidade de explicação: se existe a ideia de perfeição, de onde é que ela vem? Admitindo que «perfeito=bom», a ideia perfeita deve vir do poder supremo e perfeito, isto é, o bem, Deus.

Durante as aulas, tentei tornar clara a ideia de que o Deus de Descartes vale exactamente tanto quanto o argumento dos psicólogos evoluvcionistas de que a «causa» é a «selecção natural» ou a dos neurofisiologistas de que é «o sistema nervoso». Em qualquer dos casos está-se a dizer: «não, não é um mistério, foi X que fez isso». X é um agente mágico, com poderes que não compreendemos. Pode ser Deus, pode ser a selecção natural, pode ser o cérebro.
Vou-me explicar melhor, para que não haja dúvida quanto a isto. Não duvido de que as nossas características existem por causa da selecção natural; não duvido de que o cérebro e o sistema nervoso sejam a base da nossa vida psicológica. Mas não faço ideia – nem eu nem ninguém – como é que a selecção natural produziu seleccionou cérebros que conseguissem imaginar triângulos perfeitos; nem sei, e penso que ninguém sabe, como é que o cérebro consegue imaginar triângulos perfeitos na ausência da experiência.

Estamos aqui em pleno mistério dos mistérios: a ORIGEM da mente. Tenho passado os últimos anos da minha vida a pensar nisso, mas não quero dar-vos a minha opinião porque esta cadeira não é sobre as minha ideias e porque, em qualquer caso, a teoria ainda não está acabada (mas, se quiserem, há um capítulo no Mundos Animais, Universos Humanos, sobre isso; o livro está na biblioteca).
É por isso que esta cadeira, aparentemente tão chata, se pode tornar tão interessante. É que cada grande autor teve de tentar responder a isso, e muitos dos grandes autores eram realmente grandes pensadores. Veremos que o Jung, por exemplo, explicou isso em termos de a priori kantianos muito particulares e que, descontando os exageros e as imprecisões constantes de Jung, pode bem ser um conceito válido (os arquétipos); a etologia explicou-o em termos muito semelhantes, mas mais mecânicos; a Gestalt explicou-o em termos de uma sintonia entre espírito e mundo que se fazia através do cérebro (parece-me especulação mística, mas é a minha opinião).
O que é importante é compreender que este é um dos grandes problemas da psicologia, e acho importante que os meus alunos se confrontem com ele.
Saber de onde vem o SENTIDO, saber de onde vêm as regras de interpretação, é talvez o problema magno da Psicologia e, na verdade, de toda a biologia comportamental e toda a semiótica.

Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva disse...

Cara Inês Gargianne:

Já falámos sobre o assunto na Faculdade: Deus aparece, como explicação, cedo em Descartes - logo no início, na verdade.

Mas se quiser, pode apresentar a sua ideia - é uma ideia interessante.