sexta-feira, 11 de maio de 2007

Uexküll e a Etologia: as funções do cérebro

Na aula de hoje referimos três grupos de teorias - duas muito semelhantes, uma outra um pouco diferentes. O ponto comum a essas teorias é a importância atribuída ao comportamento como forma de relação com o ambiente.

O que dissemos na aula foi aproximadamente o seguitne.

Houve uma tendência para usar os métodos da fisiologia ao estudar a psicologia. O problema aqui é o seguinte.

A fisiologia - fisiologia significa estudo da função - fez-se, tradicionalmente, usando um conhecimento prévio da função de cada órgão ou sistema.

Assim, sabe­‑se bem para o que serve p sistema digestivo. O que a fisiologia queria explicar era como se conseguia a função que era conhecida. Para isso foi necessário estudar os processos -- por exemplo, no caso do aparelho digestivo - que asseguravam as várias fases da digestão e assimilação dos alimentos. Partiu­‑se, pois, de uma função geral, relativamente mal conhecida, para processos específicos de assegurar essa função. Assim se descobriram imensas coisas insuspeitadas, por exemplo a importância do fígado.

A fifiologia -- ou, para ser mais righoroso, a anátomo­‑fisiologia - permitiu o conhecimento preciso do funcionamento do corpo humano. A fisiologia parecia tão poderosa que vários psicólogos acharam que essa técnica permitiria descobrir a mente. Há aqui um elemento que não utilizei nas aulas mas que deve ser considerado. Durante o séc XIX assumiu­‑se um fortíssimo materialismo (que agora é mais ou menos dominante) e acreditou­‑se que a única explicação dos processos mentais poderia ser o estudo da fisiologia, isto é, das bases materiais da mente. Essas bases materiais eram, evidentemente, o cérebro.

Contudo, as funçõs gerais do cérebro não são particularmente claras. Todos nós temos dificuldade em nos recordar de como processámos uma informação: podemos lembrar­‑nos dos efeitos que certas coisas tiveram em nós. Mas tentem resolver um problema - nem precisa de ser um problema matemático, basta que seja um problema mecânico - e depois relatar os processos mentais que vos permitiram resolvê­‑lo. Verificarão que é impossível e que não têm recordação. A razão é simples: a nossa mente, como dizia Hume, é um espaço de representação de coisas, e enquanto estamos a pensar numa coisa não podemos dar a atenção aos processos da mente.

Daquilo que nos lembramos facilmente é do comportamento: aquilo que fizemos ou mesmo os estados emocionais que sentimos. Mas não dos processos da mente. De modo que o estudo da mente através do cérebro teve, de início, essa grande dificuldade: Partiu­‑se do estudo de uma função que não tinha sido descrita. É talvez por isso que a maior parte dos estudos de neuro­‑fisiologia se concentraram nas funções perceptivas. Aí é relativamente fácil conseguir caracterizar as funções: todos sabemos que vemos formas ou ouvimos sons; é fácil manipular estímulos visuais ou auditivos. De modo que se pode fixar uma variável - aquilo que vai ser percepcionado - e ver que efeito essa variável tem no funcionamento dos sentidos.

Em minha opinião, uma das razões de haver um atraso tão grande no estudos dos processos fisiológicos subjacentes aos processos mentais é simplesmente que não temos acesso fácil aos processos mentais.

Contudo, houve quem se interessasse por uma outra função da mente: o comportamento.
Mas mesmo isto é complicado. Considermos a seguinte lista:

Na anátomofisiologia antiga era costume referirmo­‑nos aos corpo em ttermos de tecidos que se organizam em órgãos que se organizam em sistemas. Assim, temos:

Sistema respiratório - assegura a respiração
Sistema cárdio­‑vascular - assegura a circulação, oxigenação e alimentação dos tecidos
Sistema reprodutor - assegura a possibilidade do acto sexual
Etc.
Sistema nervoso - assegura o quê? O pensamento? Os reflexos? O pensamento?

Como vêem, é difícil dizer exactamente para que serve o sistema nervoso. Todos sabemos que assegura o comportamento e o pensamento. Mas como - quais são as funções que temos de explicar?

Evolutivamente, o cérebro corresponde apenas a uma zona de troca de informação entre os órgãos sensoriais. É, de resto, essa a razão pela qual o cérebr0 está «à frente»: a visão corresponde a uma diferenciação de tecidos que passaram a ser sensíveis à luz reflectida; o olfacto às substâncias solúveis ou em suspensão; a audição às vibrações dos corpos. Num anuimal em movimento, faz sentido que esses tecidos receptores estejam «À frente»: quer dizer, na zona mais anterior de um animal em movimento, para que possam detectar o que vai suceder no momento a seguir no local para onde o animal se está a dirigir.
Como pode haver vantagem em cruzar a informação proveniente de vários inputs sensoriais diferentes, desenvolveu­‑se uma espécie de rede entre os diversos tecidos receptores. É isso o cérebro: uma rede de cruzamento de informações que tem de estar depois ligado à geração de movimentos.

Ou seja, evolutivamente o cérebro assegura a colecção de informação e o comportamento subsequente a essa colecta.
Este aspecto foi particularmente bem capturado pela teoria de Uexküll. Dizia ele que o organismo agarra o ambiente como com dois braços de uma tenaz: a percepção e a acção.

Aquilo que o animal percepbe - no sentido de «percepção» é apenas aquilo que os seus órgãos dos sentidos captam e que os seus a priori (codificados no cérebro) lhes permitem ver. Assim - e para dar um exemplo da nossa espécie - é impossível ver um rosto como uma coisa difrerente de um rosto: uma paisagem é decomponível em elementos, mas reagimos a um rosto globalmente: é bonito, feio, alegre, simpático, agressivo: isto é, tem um significado automático que vai desencadear em nós tendências para a acção (as nossas emoções e motivações: tentem ser simpáticos para alguém com um ar muito antipático e verão quão difícil é).

Ou seja, ver só não basta: na teoria de Uexküll é necessário dar um significado. Esse significado é determinado em termos das tendências para a acção subsequente. Assim, um leão a correr para nós tem um significado de fugir; uma cara simpática tem um significado de boa vontade, e assim por diante.

Para Uexküll o objecto de estudo estava em saber, em condições típicas das da espécie em estudo, como era extraídos os sinais do ambiente e como se lhes reagia. O que Uexküll pretendia estudar não era exactamente a fisiologia (embora ele próprio fosse um fisiologista de mérito firmado): o que ele queria saber era a organização das relações entre meio e organismo e quais as formas que essa relação tomava; essas relações eram caracterizáveis em termos da percepção (quais os aspectos que o animal abstrai do ambiente) e do comportamento (quais as respostas comportamentais que o animal dá a essas configurações).

Aqui, reparem, a função do cérebro (ou dos sistemas nervosos, porque Uexküll estudou invertebrados com cérebros relativamente pouco importantes, como os equinodermes) é claramente definida: serve para extrair informação do meio (o braço perceptivo da tenaz) e responder às situações que esse meio coloca (o braço accional da tenaz).
Um animal, compreendeu Uexküll, passa a vida toda a usar sistemas de «tenaz» - ciclos funcionais, na linguagem de Uexküll - muito variados: usa um ciclo funcional (ou mais) para acasalar, outro para encontrar alimento, outro para evitar predadores, e assim por diante. O objectivo da Biologia seria então, segundo Uexküll, compreender a maneira como esses vários ciclos funcionais adaptavam o animal ao ambiente. Tirando o facto de que Uexüll não acreditava que fosse a selecção natural a causa de toda esta perfeição, o proecto é completamente moderno: qualquer dos meus leitores gostaria de saber quais os ciclos funcionais que regem o seu próprio comportamento. O projecto é ainda mais «moderno» no sentido de que Uexküll resolveu o problema da confusão entre o comportamento e as experiência subjectivas que acompanham esse comportamento de maneira magistral: o que se pode saber é apenas a que aspectos é que o animal reage: mas nunca se pode saber como é que o animal experiência - ou sente - esses aspectos. [Em parêntesis: este aspecto também se aplica à nossa espécie: são as experiências subjectivas que determinam os comportamentos ou são meros indicadores que a nossa mente recebe? Temos tendência para acreditar que a experiência subjectiva é a causa dos comportamentos, mas há muita investigação que mostra que nem sempre é assim].

A Etologia de Lorenz e Tinbergen veio dar continuidade a este projecto. Os ciclos funcionais foram estudados em animais mais complexos (sobretudo em peixes e em aves) e as suas relações mútuas foram caracterizadas: enquanto um ciclo funcional está a ocorrer não pode aparecer outro; e, além disso, há ciclos funcionais que podem têm probabilidades sozaonais de serem desencadeados:. Isto remete para dois pontos importantes da teoria etológica: a estrutura do comportamento e a motivação.

Comecemos pela segunda: em vários peixes que mostram cuidados parentais, qualquer confuiguração remotamente parecida com uma cria é tratada como cria; por exemplo, há ciclídeos que tratam o crsutácio Daphnia (normalmente um alimento) como crias enquanto estão na fase de cuidados parentais. Ou seja, foi aparentemente activado o ciclo funcional de tomar conta da descendência. Isto implica que há um filtro perceptivo que isola uma configuração «cria» e que tudo quanto cabe nessa configuração activa o ciclo funcional (o braço comportamental da tenaz). Mas a activação destes centros varia: o mesmo ciclídeo, fora da fase de cuidados parentais («cuidados epimeléticos» é o termos «académico» para o mesmo) tratará a Daphnia com o ciclo funcional alimentar. Na aula, dei o exemplo de o cheiro da carne podre poder activar o ciclo funcional alimentar quando se tem muita fome. Os etólogos designaram as configurações a que o animal responde como estímulos sinais, as respostas como padrões fixos de acção e compreenderam que havia fases apetitivas, quer dizer, de procura, de estímulos sinais quando activado o centro motivacional relevante.

Mais, estes vários centros motivacionais (foi esse o nome que os etólogos deram às organizações de ciclos funcionais) parecem estar organizados de maneira a formar conjuntos que permitem resolver os problemas do ambiente. Por exemplo, quando chega a primavera, o peixe migra ; nadando numa determinada direcção (ou ao acaso) acaba por encontrar um local que desencadeia um subconjunto de ciclos funcionais: o peixe passa a defender um território e a cavar um ninho. Há muoitos ciclos funcionais implicados neste sistema: reconhecer o local do ninho, iniciar a sua construção, e, paralelamente, reconhecer outros machos e atacá­‑los (defesa de território). A seguir, o macho faz a corte a qualquer fêmea que se apresente. Essa corte é feita de vários ciclos funcionais e termina com o acasalamento. Há, pois, uma aparente estrutura funcional do comportamento.

Os etólogos, depois de muito criticados pelos fisiologistas (nem Lorenz nem Tinbergen o eram) acabaram por afirmar que o objecto da Etologia era explicar como o sistema nervoso procedia a este tipo de estruturação do comportamento. Em minha opinião (há um artigo meu a sair neste momento que diz isso mesmo) os etólogos estavam enganados.

Reparem que uma coisa é explicar como o comportamento e a percepção permitem a adaptação do organismo ao meio. É isso que a Etologia (e a teoria de Uexküll), pretendia capturar. Outra coisa, muito diferente, é explicar como o sistema nervoso produz os comportamentos e as percepções que resultam na adaptação. Na medida em que «explicar» significa reduzir ao nível mais baixo (explica­‑se um reflexo mostrando a organização nervosa subjacente), se o objectivo for explicar o comportamento, concordo que a explicação fisiológica é correcta.

Mas o que ocorre na Etologia é diferente: o objectivo parece ter sido o estudo da pró+ria adaptação: como é que, em termos de comportamento e percepção, o animal resolve os problemas do seu meio. Neste sentido, a explicação da adaptação é a organização dos vários sistemas motivacionais, da percepção e dos actos motores que asseguram essa adaptação. Edsta confusão dura até hoje.

Veremos, em aulas subsequentes, como a psicologia Gestalt pretendeu basicamente explicar o mesmo.

Por hoje chega.

8 comentários:

Catarina disse...

Ufa.. lido e registado!

Estive na aula hoje, mas o blog é muito útil porque faz um resumo muito elucidativo do que se falou, melhor do que os nossos apontamentos, que muitas vezes procedem de falsas interpretações e ficam sempre incompletos...

CMC,
Catarina Dias

Tyler_____Durden disse...

Creio que o professor pretende afirmar que podemos explicar uma determinada acção ou atitude mas nao o que ralmente motivou,em termos de processos cerebrais essa mm acçao,porque a cada um de nos cabe a unicidade de representação da realidade que encaramos.
Poderemos entao voltar a uma velha formula de que,serão sempre as experiencias e a forma como as "encaixamos"nas estruturas do conhecimento que vao ditar a forma de comportamento/atitude?poderemos tambem aqui colocar a problematica de maturação/experiencia de vida,pois possivelmente uma pessoa nao reagirá da mm maneira perante uma situaçao aos 17 anos e aos 42,certo?
Muito Obrigado

Gonçalo Santos

Nuno Rigueiro disse...

Boa noite, professor.

Não tive oportunidade de assistir às duas últimas aulas, no entanto, tenho apreciado a forma sintética, -mas nem sempre de fácil compreensão-, como tem resumido as mesmas, através do blogue.

Vou ser parcimonioso na minha intervenção. Em relação à problemática dos processos da mente, não terão sido, de certa forma, associados -ou melhor entendidos- através de J.Mayer, P.Salovey, D.Goleman ou até mesmo o 'nosso' A.Damásio ao longo das últimas décadas com a questão da importância das emoções?

CMC

Obrigado

Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva disse...

Gonçalo:

Bem, o que eu queria dizer era menos profundo: apenas que uma das principais funções do cérebro é a regulação com o ambiente e que o comportamento não pode ser estudado em termos daquilo que acontece na fisiologia, mas sim no resultado das suas interacções com o meio: os sistemas comportamentais não são explicáveis pela fisiologia, mas pela inter-relação entre as reacções do organismo e as partes do ambiente a que o organismo reage.

Dito isso, a parte que referiu surgirá efectivamente na sequência desta ideia, quando falarmos de Freud e de Jung.

Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva disse...

Nuno:

Fora o Damásio não conheço os autores que refere: o que é que eles dizem?

Em qualquer caso, o que temos dito nas últimas aulas é precisamente que as abordagens estritamente cognitivas são insuficientes para explicar o comportamento, que tem de ser concebido como uma resposta ao ambiente esperado pela espécie.

Comentário ao seu comentário sobre a dificuldade dos posts. Admito que não sejam muito fáceis de ler; há dias, uma aluna disse-me que estava a achar a cadeira difícil porque todos os assuntos e os conceitos eram completamente novos para ela.

O que posso sugerir é que leiam os posts mais do que uma vez. O facto de estarem num blog não significa que sejam fáceis de ler e pode haver vantagem em imprimi-los e lê-los como se fossem um livro, tomando apontamentos e dúvidas e tudo.

Também, se os posts fossem fáceis, isso significaria que não vos estaria a pedir nenhum forço de acomodação. Ora é essa a função de um professor (pelo menos como eu a entendo): dar aos alunos ferramentas para pensar.

Têm de conseguir que as vossas capacidades de apreensão - os vossos esquemas de análise - apreendam e se enriqueçam com as ideias que vos proponho. É nisso que consiste o nosso crescimento mental: ter estruturas cada vez mais complexas e diferenciadas para compreender o que vem de fora.

Nuno Rigueiro disse...

Os autores norte-americanos que referi foram os grandes 'pioneiros' do termo 'inteligência emocional' que dá especial enfoque para a gestão das emoções no nosso quotidiano.

Há uns anos li um livro que gostei muito e que recomendo vivamente: 'Inteligência Emocional' de Daniel Goleman datado de 1999. É de 'fácil leitura' (risos) e apresenta imensas metáforas e analogias que nos 'empurram' para uma leitura leve e agradável, o que pressupõe uma motivação extra.

Quanto ao seu comentário sobre 'a dificuldade dos posts', reconheço que contribuem activamente para o nosso enriquecimento e consequente sucesso futuro enquanto alunos e não só...


Cmc
Obrigado.

Teresa Afonso disse...

Boa noite Agora sim parece que é desta, finalmente acho que consegui.

Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva disse...

Caro Nuno:

Talvez porque a 'inteligência emocional' não tenha grande impacto na literatura que costumo rever, não estou ao corrente desse campo. Não posso, portanto, responder.
CMC